Quis o tempo que o primeiro comentário de conjuntura após quase uma década de seu término caísse no aniversário do infame 8 de janeiro. Desde a semana passada há uma proliferação de análises sobre os atos criminosos cometidos há um ano — muitas dessas avaliações apontam o bom funcionamento das instituições brasileiras e seu papel fundamental para impedir o que se pretendia golpe. É, sem dúvida, importante dar ênfase à robustez e à capacidade de coordenação do judiciário, legislativo, e executivo. Contudo, é bom lembrar que esse não é momento para darmo-nos um tapinha nas costas e seguir em frente.
Não bastasse a cerimônia oficial do governo para marcar 1 ano do 8 de janeiro ter sido alvo de críticas por parte de vários governadores do eixo Sul-Sudeste, é evidente que muitos não veem, ou negam-se a ver, nos acontecimentos de 2023 riscos à democracia. A isso somam-se as eleições municipais de 2024, que provavelmente deixarão novamente visívieis as fraturas que se alastraram pelo País e que o dividem de forma incontornável. Não convém minimizar aquilo que o 8 de janeiro desvelou, bem como as ramificações da data na contínua evolução e reconfiguração da ultradireita no País.
A Ultradireita, a Pauta Econômica, a Macroeconomia
Até pouco tempo parecia que o apreço pela pauta econômica da ultradireita — uma mistura de liberalismo exacerbado com pitadas de um libertarianismo messiânico e dogmático — estava circunscrito ao Brasil e a seus economistas de linha rigidamente ortodoxa. A ascensão de Javier Milei na Argentina e a defesa cega de suas medidas por parte da maioria dos economistas do mainstream fizeram ver que a fé e o fervor ideológico não são exclusividade brasileira.
Na composição das pautas defendidas pela ultradireita global, Bolsonaro e Milei são pontos fora da curva. No lugar das políticas industriais capitaneadas pelo Estado, ambos defendem/defenderam a primazia dos mercados; em vez do protecionismo e da imposição de tarifas de importação sob produtos de destinos específicos — da China — ambos se posicionam/posicionaram a favor do livre comércio. Em um mundo marcado por intervenções estatais de todo tipo, guerras comerciais, e uma espécie de ode ao nacionalismo econômico defensivo, aquele que costuma gerar os piores resultados comparado a outras vertentes nacionalistas, o mainstream parece buscar sua raison d’être nas políticas de Bolsonaro/Guedes e, agora, de Milei.
Tal posicionamento é não só perigoso ao ignorar a faceta política e de viés autoritário do ultraliberalismo, como desfavorável em um mundo que precisa cada vez mais de pessoas com capacidade de refletir além de suas preferências pessoais. O caso da Argentina expõe o problema. Javier Milei assumiu a presidência pondo em marcha um pacote de duríssimas medidas fiscais, além de outras políticas para remover as distorções acumuladas ao longo de décadas de desgoverno em seu país. Está errada a pauta? Não. A Argentina de fato precisa de um corte gigantesco de despesas, de uma reconfiguração do Estado, de reversões regulatórias, de profundas mudanças para que os mecanismos de formação de preços retornem à normalidade. Contudo, o país, hoje, sofre de uma hiperinflação.
O inconveniente da hiperinflação não é semântico. Ao reconhecer que a Argentina vive um processo hiperinflacionário, também se admite que as medidas adotadas, ainda que necessárias, não serão suficientes para restaurar a tal da normalidade. No entanto, em meio a tanto descrédito, sobretudo com os rumos tomados pela política econômica norte-americana, o mainstream econômico, esteja ele onde estiver, precisa que as medidas de Milei “deem certo”. Só assim serão capazes de mostrar que a racionalidade econômica estabelecida na época em que muitos desses economistas estiveram no auge de suas carreiras não é algo que possa ser afetado pelos fatores que governam a ordem do dia, mas algo que os transcende. É existencial essa necessidade, e por isso a defesa da responsabilidade fiscal custe o que custar tornou-se a bandeira da ortodoxia extrema.
O mundo, entretanto, é outro. O mundo não comporta visões estáticas de racionalidade econômica, e, menos ainda, o seu divórcio da política. Hiperinflações, como bem sabemos nesse ano em que completaremos 30 anos do Plano Real, são fenômenos políticos, socias, psicológicos, e econômicos. Talvez a faceta menos importante de uma hiperinflação seja, justamente, a macroeconômica, por se tratar de uma perda de confiança tão generalizada e profunda que sua solução depende de uma mudança de regime. Entenda-se por mudança de regime não somente um ajuste fiscal e outras medidas, mas uma reordenação do sistema político que possibilitou a quebra completa da confiança resultando no expurgo da moeda local.
Reconhecer que a Argentina sofre uma hiperinflação, hoje, é reconhecer que o saber macroeconômico não basta, ou ao menos que não basta no seu formato reduzido atual. É preciso dialogar com outras disciplinas, algo que economistas tradicionais ainda se recusam a fazer, sobretudo quando se trata de temas monetários. Temas monetários estão carregados de um falso cientificismo, de fé e dogma, que poucos reconhecem.
Temas Monetários e o Falso Cientificismo
O melhor exemplo do falso cientificismo que predomina nas discussões de política monetária está no debate sobre a inflação norte-americana. Quando despontou em 2021 e revelou sua resistência em 2022, economistas de renome internacional foram rápidos em descartar a tese de que a alta dos preços estava mais intimamente atrelada ao desarranjo nas cadeias de oferta provocado pela pandemia do que a qualquer outra causa. Esses economistas não negaram os efeitos da pandemia, mas argumentaram que as políticas de Biden — sobretudo os pacotes que continham as bases da política industrial dos Estados Unidos, como o Inflation Reduction Act — e o sobreaquecimento do mercado de trabalho levariam a inflação a se retroalimentar, exigindo uma alta de juros mais intensa e prolongada por parte do Fed. Não houve timidez. Muitos desses economistas afirmaram com grande confiança que o banco central teria de continuar elevando os juros em 2024 — os cenários de inflação formulados em 2021/2022 já traçavam essas previsões.
Os economistas defensores dessa tese erraram. Em 2023, ao contrário de seus cenários, a inflação cedeu, levando o Fed a interromper o ciclo de alta de juros. É verdade que tanto o mercado de trabalho, quanto outros indicadores econômicos, revelam uma economia que permanece robusta e, de acordo com alguns, sujeita a novas altas inflacionárias. No entanto, a essas alturas, parece mais provável que a reordenação das cadeias de oferta pós-pandemia tenha produzido os efeitos observados em 2023, justificando o diagnóstico de que foi a pandemia o principal responsável pelo choque inflacionário global — claro, exacerbado pela guerra Rússia-Ucrânia.
Guerras e Eleições
À guerra Rússia-Ucrânia somou-se o conflito no Oriente Médio. As duas conflagrações tornaram-se temas divisórios adicionais no quadro políticos de diversos países ao redor do mundo. A esse panorama acrescentarse-ão as turbulências relacionadas ao mais intenso calendário eleitoral de que se tem notícia. Em 2024 haverá 40 eleições — nenhum continente escapará. Entre elas estão as eleições municipais brasileiras já mencionadas, as eleições presidenciais nos Estados Unidos, as eleições para o Parlamento Europeu, as eleições gerais na Índia, as eleições gerais na Rússia, além de eleições em vários países latino-americanos, como o México, o Peru, e, bem, a Venezuela.
Será um ano conturbado. Será um ano em que não faltará assunto para os comentários semanais de conjuntura. É o ano perfeito para o renascimento da Galanto.
Um bom ano ano novo Monica e todos os assinantes da Galanto Macroeconomia