“VINE a Comala porque me dijeron que acá vivía mi padre, un tal Pedro Páramo. Mi madre me lo dijo. Y yo le prometí que vendría a verlo en cuanto ella muriera. Le apreté sus manos en señal de que lo haría, pues ella estaba por morirse y yo en un plan de prometerlo todo. “No dejes de ir a visitarlo -me recomendó. Se llama de este modo y de este otro. Estoy segura de que le dar gusto conocerte.” Entonces no pude hacer otra cosa sino decirle que así lo haría, y de tanto decírselo se lo seguí diciendo aun después de que a mis manos les costó trabajo zafarse de sus manos muertas.”
Pedro Páramo, obra de Juan Rulfo, publicada em 1955
Quando chega ao misterioso vilarejo de Comala, Juan Preciado, o protagonista, encontra um lugar sombrio. Seu pai está morto, na cidade circulam os fantasmas daqueles que assassinara. Pedro Páramo, como descobre Juan, era o líder saguinário do vilarejo. A clássica obra do mexicano Juan Rulfo simboliza a violência e a corrupção das lideranças latino-americanas ao longo do Século XX, que facilmente se estende para o Século XXI.
Pedro Páramo faz pensar no Equador, e em como os acontecimentos da última semana poderiam facilmente ter ocorrido em qualquer outro país latino-americano, inclusive no Brasil. A imprensa noticiou os fatos, mas em grande medida deixou de lado o pano de fundo.
Espremido entre a Colômbia e o Peru, o Equador sempre serviu como rota para o escoamento de cocaína, ainda que não produza a droga. Durante muito tempo, as rotas que passavam pelo Equador eram dominadas pelas FARC colombianas. Com o poder que tinham e o grau de interconexão internacional, as FARC impediam que qualquer outra organização ou grupos criminosos se apoderassem das rotas equatorianas. Em 2016, o então presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, firmou o acordo de paz com as FARC que lhe rendeu o Prêmio Nobel da Paz. O acordo previa a participação política de integrantes das FARC em troca de sua desmobilização.
Com a desmobilização das FARC no Equador, que jamais tiveram qualquer interesse pela política local, ficou um vácuo. Esse vazio foi rapidamente preenchido por gangues locais que ao longo dos anos formaram parceria com o crime organizado que ainda operava na Colômbia — em parte por dissidentes das FARC — como também com os da Venezuela, do Brasil, do Peru, do México. A região conhecida como Três Fronteiras, formada pelas cidades de Tabatinga no Amazonas, Leticia na Colômbia, e Santa Rosa do Yavarí no Peru, passou a ser uma terra de ninguém — algo como a fictícia Comala. Hoje a região é dominada pelo garimpo ilegal, por atividades criminosas diversas, e, claro, pelo narcotráfico. Trata-se de uma área crítica para a entrada de drogas no Brasil, bem como para a sua saída em direção ao México e aos Estados Unidos. Grupos criminosos como Los Choneros e Los Lobos no Equador são fundamentais nessas operações.
Há algum tempo partes do poder judiciário no Equador vêm investigando as ligações do narcotráfico com as forças de segurança no país e sua infiltração nas instituições do Estado. Contudo, a ascensão de Daniel Noboa ao poder marcou um momento auspicioso para que o crime organizado do país mostrasse sua força.
Daniel Noboa foi eleito em novembro de 2023 após o ex-presidente Guillermo Lasso acionar o dispositivo constitucional conhecido como muerte cruzada. O dispositivo prevê que um presidente acuado por um processo de impeachment — caso de Lasso em 2023 — possa dissolver a Assembleia Nacional e acionar novas eleições presidenciais. O vencedor das eleições cumpre o restante do mandato presidencial. Noboa, portanto, tem somente 15 meses de governo. É jovem e dispõe de pouca experiência política, o que o torna ideal aos olhos do narcotráfico para testar os limites de sua influência política. Foi isso que o mundo testemunhou na semana passada.
Do Ecuador para o Resto da Região
Os eventos do Equador são um alerta para toda a América Latina, onde o crime organizado é não só muito atuante, como também ambicioso e, a depender do país, infiltrado nas instituições. É esse o caso de vários estados brasileiros, do Amazonas a outros estados do norte ao Rio de Janeiro. Visto por esse prisma, a ameaça do Equador dá um novo sentido aos “riscos à democracia” tão frequentemente citados.
Ah, mas e o Nayib Bukele? Para quem não o situa de imediato, Bukele é o atual presidente de El Salvador que conseguiu por meio de táticas no mínimo controvertidas reduzir a violência relacionada ao narcotráfico em seu país. Em dezembro de 2023, Bukele se valeu de uma manobra questionável para poder concorrer à presidência em fevereiro de 2024 — em El Salvador não há reeleição, o que levou o líder do país a afastar-se temporariamente do poder para que possa tornar-se candidato. Portanto, além da estratégia de Bukele para combater a violência do tráfico ter aspectos condenáveis, o próprio presidente-candidato está a revelar-se um autêntico autoritário aproveitando a sua popularidade e sucesso. Trata-se, sem dúvida, de uma espécie de Pedro Páramo.
Para além dos Mercados
Que os mercados não têm interesse ou mesmo a capacidade de enxergar o alcance de acontecimentos políticos, sobretudo quando esses estão “longe” das praças principais da região, é algo que não é novidade. No entanto, dessa vez a ligação entre o que ocorre na América Central e o que acontece na América do Sul têm profundas implicações para todos os países da região, abandonados à própria sorte devido à falta de interesse do resto do mundo. Os EUA e a Europa há muito não se importam com o que acontece na América Latina. Há guerras no resto do mundo que mobilizam as atenções da imprensa internacional, para quem a região passou a ser um pé de página ou, na melhor das hipóteses, uma nota para preencher espaços. A China?
A China tem outros interesses, além de não ser, exatamente, um país desenvolvido. Nunca é demais lembrar que é pela América Latina — e pelo Equador em particular — que passam as rotas de imigração de chineses para os Estados Unidos. E, claro, essas rotas também estão sob o domínio do narcotráfico.
Apesar do trágico que é essa conjuntura, é uma alegria quando o acesso ao pensamento pode ser feito pela literatura. Tudo fica mais claro, mais intuitivo e vivo, menos "intelectual". Não é o único motivo para ter gostado muito desse Comentário. Mas foi o que imediatamente me atraiu. Eu sabia que estava aqui na Galanto, mas de repente me senti, por um minutinho, no Bookverse lendo sua bela ficção... Que continuo esperando!
Muito bom . Infelizmente , é uma triste conjuntura ...